____Levantara-se a dama, de esquisita maneira, e, rodopiando sobre os
calcanhares, qual se um motor lhe acionasse os nervos, caiu em convulsões,
inspirando piedade.
____Jazia sob o império de impassíveis
entidades da sombra, sofrendo, contudo, mais fortemente, a atuação de
uma delas que, ao enlaçá-la, parecia interessada em aniquilar-lhe a
existência.
____A
infortunada senhora, quase que uivando, à semelhança de loba ferida,
gritava a debater-se no piso da sala, sob o olhar consternado de Raul
Silva que exorava a Bondade Divina em silêncio.
____Coleando pelo chão, adquiria animalesco
aspecto, não obstante sob a
guarda generosa de sentinelas da casa.
____Áulus e o irmão Clementino,
usando avançados recursos magnéticos, interferiram no deplorável
duelo, constrangendo o obsessor a desvencilhar-se, de certo modo, da enferma que continuou, ainda assim, dominada por ele, a
estreita distância. ____Após reerguer a doente, auxiliando-a a sentar-se, rente ao marido, nosso instrutor deu-se
pressa em explicar-nos:— É um problema complexo de fascinação. Nossa irmã permanece
controlada por terrível hipnotizador desencarnado, assistido por vários
companheiros que se deixaram vencer pelas teias da vingança. No ímpeto
de ódio com que se lança sobre a infeliz, propõe-se humilhá-la,
utilizando-se da sugestão. Não fosse o concurso fraternal que veio
recolher neste santuário de prece, em transes como este seria vítima
integral da licantropia deformante. Muitos Espíritos, pervertidos no
crime, abusam dos poderes da inteligência, fazendo pesar tigrina crueldade sobre quantos ainda sintonizam com eles pelos débitos do
passado. A semelhantes vampiros devemos muitos quadros dolorosos da patologia_mental nos manicômios, em que numerosos pacientes, sob intensiva ação
hipnótica, imitam costumes,posições e atitudes de animais
diversos.
____Ao passo que a doente gemia de estranho modo, amparada pelo esposo e por Raul, que se esmerava no auxilio, Hilário, espantado, indagou:— Tão doloroso fenômeno é comum? ____— Muito generalizado nos processos_expiatórios em que os Espíritos acumpliciados na delinqüência
descambam para a esfera vibratória dos brutos — esclareceu nosso
orientador, coadjuvando em benefício da enferma, cujo cérebro prosseguia
governado pelo insensível perseguidor como brinquedo em mãos de criança.
____— E por que não separar de vez o
algoz da vítima? ____— Calma, Hilário! — ponderou o Assistente. Ainda não examinamos o
assunto em sua estrutura básica. Toda obsessão tem alicerces na reciprocidade.
Recordemos o ensinamento de nosso Divino Mestre. Não basta arrancar o
joio. É preciso saber até que ponto a raiz dele se entranha no solo com
a raiz do trigo, para que não venhamos a esmagar um e outro. Não há dor sem razão. Atendamos, assim, à lei da cooperação, sem o propósito de
nos anteciparmos à Justiça Divina.
____Raul Silva, sob o controle do mentor da casa, tentava sossegar o agitado
comunicante, recordando-lhe as vantagens do perdão e incutindo-lhe a
conveniência da humildade e da prece. ____Aflito, como não querendo perder o fio da lição, meu colega abeirou-se
de nosso orientador e alegou:—
Todavia, para colaborar em favor desses irmãos em desespero, será
suficiente o concurso verbalista? ____—
Não lhes estendemos simplesmente palavras, mas acima de tudo o nosso
sentimento. Toda frase articulada com amor é uma projeção de nós
mesmos. Portanto, se é incontestável a nossa impossibilidade de
oferecer-lhes a libertação prematura, estamos doando, em favor deles,
a nossa boa-
vontade, através do verbo nascido de
nossos corações, igualmente necessitados de plena redenção com o
Cristo.
____E,
num tom demasiado significativo, Áulus acrescentou:—
Analisando o pretérito, ao qual todos nos ligamos, através de lembranças
amargas, somos enfermos em assistência recíproca. Não seria licito
guardarmos a pretensão de lavrar sentenças definitivas pró ou contra
ninguém, porque, na posição em que ainda nos achamos, todos possuímos
contas maiores ou menores por liquidar.
____Interrompendo a conversação, nosso instrutor lançou-se ao amparo
eficiente da dupla em desesperada contenda.
____Para
o cuidado fraterno de que dava testemunho, a doente e o perseguidor
mereciam igual carinho.
____Aplicou passes de desobstrução à garganta da enferma e, em breves instantes, o
verdugo começou a falar, através dela, numa algaravia, cujo sentido
literal não conseguíamos perceber.
____Entretanto,
pela onda de pensamento que lhe caracterizava a manifestação, sabíamos
que a ira se lhe extravasava do ser.
____Raul Silva, a seu turno, recolhendo impressões idênticas, pela dura inflexão
da voz com que as palavras eram pronunciadas, procurava asserená-lo quase
em vão.
____Observando
a enferma completamente transfigurada e assinalando-nos a muda interrogação, Áulus se deteve por alguns minutos a
auscultar
o cérebro do comunicante e o da médium, como
a sondar-lhes o mundo íntimo, e, em
seguida, voltou para junto de nós.
____Diante
da profunda apreensão que passou a dominar-lhe o rosto, Hilário tomou-me
a dianteira, inquirindo, assombrado:—
A que causa atribuir semelhante conflito? ____—
Tentei alguma penetração no passado a fim de algo saber — respondeu o
orientador, entristecido. — As raízes da desavença vêm de longa distância
no tempo. Não obstante o dever de não relacionar pormenores, para não
conferir maior saliência ao mal, posso dizer-lhe que o enigma perdura
vai já em pouco mais de um milênio. Nosso infeliz irmão fala um antigo
dialeto da velha Toscana, onde, satisfazendo a obsidiada de hoje, se fez
cruel estrangulador. Era legionário de Ugo, o poderoso duque da Provença,
no século X ... Pela exteriorização a que se confia, acompanho-lhe as
terríveis reminiscências ... Reporta-se ao saque de que participou na época
a que nos referimos, no qual, para satisfazer à mulher que lhe não
correspondeu ao devotamento, teve a infelicidade de aniquilar os próprios
pais ... Tem o coração como um vaso transbordante de fel ... Porque
o Assistente se interrompera, meu colega, naturalmente tão interessado
quanto eu em maiores revelações, pediu-lhe mais ampla incursão no
passado, ao que Áulus nos recomendou aquietássemos o espírito de
consulta.
____A
volta aos quadros terrificantes, largados ao longe por aquelas almas em
sofrimento, a ninguém edificaria.
____Eram
dois corações desesperados, no inferno estabelecido por eles mesmos. Não
convinha analisar-lhes o sepulcro de fogo e lama, nas sombras da
retaguarda.
____Restaurando
a atenção no estudo que nos cabia fazer, lembrei a questão do idioma.
Achávamo-nos
no Brasil e a obsidiada
ensaiava frases num dialeto já morto.
____Por
que motivo não assimilava o pensamento da entidade, a empolgar-lhe o cérebro
em ondas insofreáveis, transformando-o em palavras do português
corrente, qual acontecera em numerosos processos de intercâmbio sob nossa
observação? —
Estamos à frente de um caso de mediunidade_poliglota_ou_de_xenoglossia — explicou o Assistente. — O filtro mediúnico e a entidade que se
utiliza dele acham-se tão intensamente afinados entre si que a
passividade do instrumento é absoluta, sob o império da vontade que o
comanda de modo positivo. o obsessor, por mais estranho pareça, jaz
ainda enredado nos hábitos por que pautava a sua existência, há séculos,
e, em se exprimindo pela médium, usa modos e frases que lhe foram típicos.
____—
Isso, entretanto — objetou Hilário —, é atribuível à mediunidade propriamente dita ou à sintonia mais completa? ____—
O problema é de sintonia — informou o Assistente.
____—
Contudo, se a doente não lhe houvesse partilhado da experiência
terrestre, como legítima associada de seu destino, poderia o
comunicante externar-se no dialeto com que se caracteriza?
____—Positivamente não — esclareceu Áulus. —Em todos os casos de xenoglossia, é preciso lembrar que as forças do passado são trazidas
ao presente. Os desencarnados, elaborando fenômenos dessa ordem,
interferem, quase sempre, através de impulsos automáticos, nas energias subconscienciais, mas exclusivamente por intermédio de personalidades
que lhes são afins no tempo. Quando um médium analfabeto se põe a
escrever sob o controle de um amigo domiciliado em nosso plano, isso não
quer dizer que o mensageiro espiritual haja removido milagrosamente as
pedras da ignorância. Mostra simplesmente que o psicógrafo traz
consigo, de outras encarnações, a arte da escrita já conquistada e
retida no arquivo da memória, cujos centros o companheiro desencarnado
consegue maliar.
Hilário fez o gesto indagador do aprendiz e insistiu:
— Podemos concluir, então, que se a enferma fosse apenas médium,
sem o pretérito de que dá testemunho, a entidade não se exprimiria por
ela numa expressão cultural diferente da que lhe é própria ... ____— Sim, sem dúvida alguma — aprovou o instrutor —; em mediunidade há também o problema da sintonia no tempo... ____Conjugando
nosso esforço, separamos, de alguma sorte, o algoz da vítima,
conquanto, segundo apontamento de nosso orientador, continuassem unidos
pela fusão magnética, mesmo a distância.
____Companheiros
de nossa esfera retiraram o Espírito obsessor, encaminhando-o a certa
organização socorrista.
____Ainda
assim, a doente gritava, afirmando estar à frente de medonho
estrangulador em vias de sufocá-la ____Aplicando-lhe passes de reconforto, Áulus esclareceu: —
Agora é apenas o fenômeno alucinatório, natural em processos de fascinação como este. Perseguidor e perseguida jazem na mais estreita ligação
telepática, agindo e reagindo mentalmente um sobre o outro.
____Gradativamente,
a enferma acalmou-se.
____Finda
a crise, perguntei ao nosso orientador sobre o remédio definitivo à
dolorosa situação, ao que respondeu com grave entono: —
A doente está sendo preparada, tendo-se em vista uma solução justa para
o caso. Ela e o verdugo, em breve, serão mãe e filho Não há outra
alternativa na obtenção do trabalho redentor. Energias divinas do amor
puro serão mais profundamente tocadas em sua sensibilidade de mulher e
nossa irmã praticará o santo heroísmo de acolhê-lo no próprio seio.
____Em
seguida, deixando-nos pensativos, caminhou no rumo de outro necessitado,
enquanto exclamava:—
Louvado seja Deus pela glória do lar! |